Opinião: PEC 186 dá calote em direitos sociais, estados e municípios
por Maria Lucia Fattorelli*
A pressão social impediu que o Substitutivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186/2019, conhecida como PEC Emergencial, fosse votado dia 25, apenas 3 dias após a sua divulgação pelo senador Márcio Bittar, mas a sua votação já está anunciada para dia 2de março.
O referido substitutivo está muito mais nocivo que a proposta original, pois abarca trechos de outras propostas, antecipando inclusive trechos da PEC 32, chamada de reforma administrativa, que na realidade desmonta a estrutura do Estado brasileiro, representando uma profunda modificação na Constituição Federal de 1988, transformando-a na constituição do mercado!
A desculpa que vem sendo usada para convencer parlamentares e a opinião pública da “emergência” dessa PEC é a necessidade de disponibilizar recursos para pagar o auxílio emergencial, usando assim uma necessidade social premente para desmontar os direitos sociais conquistados desde 1988 e ainda em fase atrasada de implantação efetiva.
Evidentemente, é fundamental retomar o pagamento do auxílio emergencial aos famintos, porém, não precisamos destruir os direitos sociais, pois temos recursos de sobra, líquidos, em caixa, mais que suficientes para garantir tal benefício.
Possuímos quase R$ 5 trilhões em caixa: R$ 1,289 trilhão na conta única do Tesouro Nacional, R$ 1,836 trilhão em reservas internacionais, R$ 1,393 trilhão de sobra de caixa dos bancos parados no Banco Central rendendo juros somente aos bancos, às custas do povo! Além disso tivemos superávit de mais de US$ 50 bilhões na balança comercial em 2020; temos potencial para arrecadar tributos de ricos que não pagam e várias outras fontes de recursos, pois o Brasil é riquíssimo!
Não faltam recursos no Brasil! Prova disso é a destinação de centenas de bilhões, todos os anos, para a remuneração diária da sobra de caixa dos bancos, a denominada Bolsa-Banqueiro, que deveria ser imediatamente interrompida, juntamente com outros nocivos mecanismos operados pelo Banco Central.
Como aceitar a chantagem colocada agora, na PEC 186, que faz um verdadeiro escambo entre direitos sociais e auxílio emergencial? Se existem recursos para Bolsa-Banqueiro ilegal não deveriam faltar para o auxílio emergencial aos famintos!
O que está ocorrendo no Brasil é gravíssimo: um verdadeiro desmonte progressivo do Estado em prol dos interesses do mercado. Desde a crise fabricada principalmente pela política monetária do Banco Central em 2014, tal crise tem sido usada para justificar o insano teto de gastos (EC-95), contrarreformas (Trabalhista, Previdenciária, Administrativa), a entrega do Banco Central para o mercado financeiro (PLP 19/2019, inconstitucional), privatizações que atingem Petrobras, Eletrobras, Correios, Casa da Moeda, Serpro, Dataprev, entre várias outras empresas estratégicas e lucrativas.
A crise fabricada tem levado milhões de empresas de todos os setores à falência e milhões ao desemprego, aumentando a desigualdade social no Brasil ao mesmo tempo em que seguem elevadíssimos os lucros dos bancos e a brutal concentração de renda e riqueza, que fazem do Brasil um dos países mais injustos do mundo.
A PEC 186 é mais um ingrediente que vem justificado por essa crise fabricada, desmontando os direitos sociais previstos na Constituição. O mais grave é que sua votação é iminente, cortando direitos em plena pandemia, sem o imprescindível debate público, tendo em vista que parlamentares são representantes do povo, e não podem tomar decisão drástica de modificar o escopo da Constituição sem ouvir a sociedade civil.
O Substitutivo da PEC 186 insere, no Art. 6º da Constituição (CF), um parágrafo único que condiciona a garantia de direitos sociais ao equilíbrio fiscal: “Será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”.
Com esse dispositivo, todos os direitos sociais previstos no Art. 6º da CF (educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados) ficarão condicionados a um conceito de “equilíbrio fiscal”, isto é, ficarão constitucionalmente subordinados ao pagamento da questionável dívida pública que nunca foi devidamente auditada, como manda a CF.
A grande mídia e analistas conservadores têm usado a expressão “equilíbrio fiscal” como justificativa para cortar investimentos sociais, sendo que a verdadeira causa de desequilíbrio fiscal no país tem sido o exorbitante gasto com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública.
O condicionamento dos direitos sociais ao pagamento da chamada dívida pública corresponde a um CALOTE à Saúde, Educação e todos os direitos sociais, pois coloca o gasto financeiro acima dos direitos sociais previstos no Art. 6º da CF.
O Substitutivo contém ainda o fim das vinculações (pisos) de recursos para saúde e educação, nas esferas federal, estaduais e municipais, o que é um retrocesso histórico inaceitável!.
Como resultado da forte pressão social, alguns jornais noticiaram na sexta-feira (26) que o senador Márcio Bittar irá fazer uma modificação em seu Substitutivo, modificando essa parte. Entretanto, ainda que de fato faça essa modificação, se ele mantiver a subordinação dos direitos sociais ao pagamento da dívida pública (inserida no parágrafo único do Art. 6º da CF) e a desvinculação de recursos para pagar a questionável dívida pública (inserida no Art. 167-F), estará irremediavelmente comprometida a garantia dos direitos sociais no Brasil, aprofundando ainda mais as desigualdades sociais.
A PEC 186 representa um calote também aos estados e municípios, pois acaba com o ressarcimento pela União das perdas de estados e municípios com a chamada Lei Kandir: lei federal (Lei Complementar 87/96) que concedeu isenção de imposto estadual (ICMS) sobre exportações de produtos primários e semi-elaborados, obrigando o governo federal ressarcir estados e municípios dessa perda. Ao longo dos anos, o ressarcimento tem sido historicamente insuficiente e a PEC 186 extingue a possibilidade de reposição dessas perdas, empobrecendo todos os entes federados do país.
Por outro lado, a PEC 186 é permissiva com devedores da Previdência, na medida em que permite que a pessoa jurídica em débito com a Seguridade Social possa contratar com o Poder Público e receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios. Ela acaba também com a destinação de 28% do PIS/Pasep para os financiamentos do BNDES.
A PEC 186 insere dispositivos que explicitam o privilégio do gasto financeiro com a chamada dívida pública: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis que assegurem sua sustentabilidade”. (…) “A elaboração e a execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida”.
Dessa forma, a PEC 186 aumentará a desigualdade social, pois além de condicionar os direitos sociais ao “equilíbrio fiscal”, reforça ainda mais o privilégio da questionável dívida pública, que não tem servido para investimentos, como declarou o próprio Tribunal de Contas da União, mas tem alimentado vários mecanismos financeiros ilegais e ilegítimos.
Cabe ressaltar que durante 20 anos produzimos R$ 1 trilhão de “superávit primário” e este não foi suficiente para controlar o crescimento da dívida interna federal, que explodiu de R$ 86 bilhões para R$ 4 trilhões no período, justamente porque a verdadeira causa de desequilíbrio fiscal no país tem sido o exorbitante gasto com os mecanismos do Sistema da Dívida, em especial aqueles operados pelo Banco Central.
Adicionalmente, a PEC 186 permite que sejam feitas operações de crédito para custear despesas correntes, alegando que o país está precisando se endividar para cobrir os gastos com a pandemia, o que é enganoso.
Na verdade, a autorização para emissão de dívida para custear despesas correntes visa “legalizar” o pagamento de juros da dívida pública com recursos oriundos de novos empréstimos, o que já vem sendo feito de forma inconstitucional, por meio de artifício de contabilização de juros como se fosse amortização, conforme tem denunciado a Auditoria Cidadã da Dívida desde a CPI da Dívida em 2009/2010.
O Substitutivo da PEC 186 privilegia mais uma vez o pagamento da dívida ao permitir que recursos disponíveis na Conta Única do Tesouro (o chamado “superávit financeiro”) sejam destinados para o pagamento da dívida pública, ainda que tenham vinculação com determinado investimento social.
O Substitutivo também prevê que, caso a relação entre despesas correntes e receitas correntes supere 95%, no âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios, será acionado um gatilho que faculta aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas e à Defensoria Pública do ente, vedar, por exemplo:
– a concessão de qualquer aumento, vantagem, criação de cargos, planos de carreira, entre vários direitos devidos aos servidores públicos;
– qualquer aumento de despesa obrigatória;
– o aumento real do salário-mínimo ou benefícios previdenciários;
– criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, que poderiam estimular o funcionamento produtivo da economia.
Na tentativa de gerar um argumento a favor da PEC, o relator inseriu a continuidade do chamado “orçamento de guerra”, permitindo que gastos relacionados à pandemia (principalmente o “Auxílio Emergencial”) fiquem dispensados da observância das limitações quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa.
Porém, parlamentares e sociedade em geral não podem se deixar enganar por este dispositivo, que na verdade deveria existir para todos os investimentos sociais há muito tempo, e sua aprovação não deveria estar condicionada ao desmonte dos direitos sociais inseridos na Constituição de 88, nitidamente para que sobrem mais recursos ainda para os gastos financeiros com a chamada dívida pública, cada vez mais obscura e injustificável, cuja auditoria, com participação social, é urgente e necessária!
*Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB.
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