Desigualdade social, ausência de democracia e ditadura do capital
*por Maria Lucia Fattorelli
A luta pela verdadeira democracia vem sendo realizada de forma lenta, e alguns passos dessa trajetória são muito recentes e incompletos, pois ainda estamos longe da igualdade de direitos e, principalmente, muito distantes da igualdade de oportunidades para todas as pessoas.
Poderíamos fazer inúmeras abordagens sobre a ausência de igualdade de oportunidades. Por exemplo, na questão de gênero, como falar em democracia se há menos de 100 anos as mulheres sequer eram consideradas cidadãs, e somente após a Constituição de 1988 deixaram de ficar submetidas ao cabeça do casal? Na questão racial, a abolição da escravatura é também fato recente na história da humanidade, e até os dias atuais o ranço dessa violência está presente e faz com que simplesmente pela cor da pele as pessoas sejam discriminadas, assassinadas, perseguidas, e não tenham as mesmas chances que as de pele clara.
Na abordagem política, a igualdade de oportunidades também está a léguas de distância do que se poderia chamar de democracia. O tão aclamado direito ao voto individual e secreto perde completamente o seu valor quando a pessoa que vota não tem acesso à educação e informação que lhe permita fazer escolhas conscientes; não tem condições mínimas de vida que lhe garanta o atendimento às suas necessidades básicas, de tal forma que ela é obrigada a correr atrás de seu sustento, e nem consegue compreender a conjuntura de forma lúcida, além de ficar sujeita às ofertas de compra de votos e outras influências abusivas.
No Brasil, segundo o IBGE (1), o número de pessoas em condição de extrema pobreza, que vivem com menos de R$145,00 mensais, já tinha alcançado a marca de 13,5 milhões de pessoas em 2018, portanto, bem antes da pandemia do coronavírus.
Instalada a pandemia, o número de pessoas que já se habilitou para receber o auxílio emergencial de R$600,00 chega 64,1 milhões de pessoas e, em uma projeção mais extrema da crise e do desemprego, poderá chegar a 112 milhões de pessoas (2)!
Como podemos falar em igualdade de oportunidades quando tantas pessoas não dispõem do mínimo necessário à sua sobrevivência e ainda morrem de fome, não têm sequer acesso a saneamento básico e são condenadas à ignorância política e à discriminação?
O mais grave é o fato de que essa violência social está acontecendo em um dos países mais ricos do planeta! O Brasil é a 9ª maior potência econômica do mundo e é riquíssimo em todos os sentidos! Possuímos a maior reserva de nióbio; petróleo; mais de 55 minerais estratégicos; água doce; terras agricultáveis; florestas e todos os biomas; todas as matrizes energéticas; clima favorável; dinheiro em caixa:
Há vários anos, o Brasil tem mantido cerca de R$ 4 trilhões em caixa (3), reservados para o pagamento dos gastos financeiros com a chamada dívida pública que nunca foi integralmente auditada:
•saldo de R$ 1,39 trilhões na conta única do Tesouro Nacional;
•R$ 1,7 trilhão em Reservas Internacionais;
•R$ 1,3 trilhão no caixa do Banco Central.
Em plena pandemia, enquanto o pagamento do auxílio emergencial aos pobres irá custar cerca de R$154 bilhões (4) para o pagamento de três parcelas no período de abril a junho, os bancos, que já dispõem de diversos privilégios financeiros, tributários e fiscais e são o setor mais lucrativo do país, estão recebendo vários trilhões de reais:
•Receberam um pacote de ajuda no valor de R$ 1,2 Trilhão em 23/03/2020 (primeiro dia útil após o reconhecimento do estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional), a fim de facilitar empréstimos para empresas(5). Não cumpriram o combinado e ainda lucraram com o dinheiro “empoçado” no caixa dos bancos, que é remunerado diariamente pelo Banco Central. Só passarão a emprestar para as micro e pequenas empresas com garantias dadas pelo Tesouro Nacional através do Pronampe, pois não se dispõem a correr risco algum, apesar de terem recebido o pacote de R$1,2 trilhão.
•Irão receber vários trilhões de reais com a EC 106/2020, que autoriza o Banco Central comprar papéis podres de bancos, sem limite, entregando-lhes títulos da dívida pública e os seus generosos juros, comprometendo gravemente as finanças públicas do Brasil, mais que em qualquer outro país onde medidas semelhantes estão sendo adotadas para favorecer o mercado financeiro (6)
•Enquanto o Banco Central acumula prejuízos em contratos de SWAP (7) , que em apenas 5 meses deste ano já atingiram o montante de R$ 63,5 bilhões (8), do outro lado, os poucos bancos e grandes corporações privilegiadas que têm acesso a tais contratos sigilosos ganharam esse valor, que é superior ao autorizado para todos os 26 estados, DF e mais de 5.500 municípios pela Lei Complementar 173/2020, para o combate à pandemia!
•Além disso, em plena pandemia, no dia 02/05/2020, sábado à noite, o Senado introduziu o esquema de Securitização de Créditos no PLP 39/2020 e a Câmara aprovou em seguida. A Securitização (9) é a nova modalidade de gerar dívida pública privilegiada, pois os recursos para o seu pagamento são desviados durante o seu percurso pela rede bancária, antes de alcançar o orçamento público. Com esse mecanismo, haverá perda de controle sobre parte crescente da arrecadação tributária e outras receitas públicas, comprometendo gravemente o financiamento do Estado e o atendimento às políticas públicas. Enquanto isso, bancos privilegiados passam a receber tais recursos prioritariamente e sem o devido controle orçamentário.
Tais mecanismos não têm nada a ver com a pandemia do coronavírus; não representam ajuda alguma aos entes federados, pelo contrário, irão agravar ainda mais a situação, pois impactam gravemente na geração de dívida pública sem contrapartida alguma, a qual passa a exigir mais e mais dinheiro público para o seu pagamento, sangrando os orçamentos públicos e reduzindo direitos sociais, além da perda de patrimônio público continuamente privatizado “para pagar dívida pública”.
A ausência de democracia na distribuição de recursos públicos é flagrante!
Até 22/junho/2020, enquanto mais de 50 mil pessoas já morreram, o volume de recursos (10) destinado às pessoas (R$152,6 bilhões); à garantia estatal para empréstimos às pequenas empresas (R$ 35,9 bilhões); aos estados, DF e municípios (R$ 76,2 bilhões), e à área da saúde (R$ 44,9 bilhões, dos quais apenas uma pequena parte foi efetivamente liberada, o que está sendo investigado em inquérito do MPF (11), os lucrativos bancos estão recebendo vários trilhões de reais!
Esse privilégio dos bancos não é de hoje e pode ser comprovado em inúmeros atos legais e fatos, destacando-se a Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabeleceu forte controle sobre todos os gastos sociais e com a manutenção da máquina pública, porém, deixou sem limite ou controle algum o gasto com a política monetária suicida (12) exercida pelo Banco Central, cujo custo é integralmente transferido para o Tesouro Nacional, ou seja, para toda a sociedade. Cabe destacar também a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu teto para todas as rubricas orçamentárias, deixando fora do teto, sem limite ou controle algum, os gastos financeiros com a chamada dívida pública, que favorece principalmente os bancos. Por isso, dentre outras razões, os bancos continuaram batendo recordes de lucros, mesmo após a crise de 2015, que derrubou o PIB em mais de 7%, levou milhões de empresas à falência e o desemprego recorde de mais de 14 milhões de pessoas.
Enquanto enfrentamos o drama da pandemia, acompanhada de crise política grave, e muita demanda por democracia, é importante lembrar que já vivemos sob a ditadura do capital há muito tempo, e, nessa circunstância, não existe democracia de fato, ainda que as instituições estejam funcionando, claramente dominadas pelos interesses financeiros comandados de fora, pelo BIS (13) , que subordina a maioria dos bancos centrais do mundo, inclusive o do Brasil.
Sob a ditadura do capital, não há espaço para as liberdades democráticas, em especial, não há igualdade de oportunidades para todas as pessoas, agravada pela atuação da grande mídia, que censura fortemente qualquer possibilidade de questionamento sobre o modelo que privilegia os gastos financeiros e os lucros dos bancos acima de tudo.
Nesse contexto, iniciativas cidadãs que exigem a transparência dos gastos públicos são fortemente atacadas, tendo em vista que a comprovação dos imensos e injustificáveis privilégios financeiros é que seria capaz de alertar as pessoas a perceberem a vastidão da ditadura do capital a que temos sido submetidos ao longo de séculos. Evidente essa conscientização não interessa aos ditadores, e é tarefa de todos que lutam pela verdadeira e plena democracia.
*A auditora Fiscal Maria Lucia Fattorelli é representante da Auditoria Cidadã da Dívida Pública
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