Artigo: Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe!
por Flausino Antunes*
Esse verso da música “Construção”, de Chico Buarque, da década de 1970, com fortes críticas das desigualdades sociais e da exploração do trabalho humano, nunca foi tão verdadeiro com tanto sentido, como atualmente no cenário econômico.
Também pudera, com o preço do arroz e dos alimentos praticados no Brasil, comer arroz e feijão está virando artigo de luxo. E a população da menor faixa de renda não está conseguindo comprar os alimentos que mais compõem o cardápio dos brasileiros.
E como chegamos nesse cenário de absoluta calamidade de soberania alimentar, com preços nas alturas, num país que no senso comum é o “celeiro do mundo” e onde “tudo em se plantando, dá”?
As frases não deixam de ser verdadeiras pois, a safra brasileira de grãos do biênio 2019/2020 alcançou produção recorde, com um total 257,8 milhões de toneladas, segundo levantamento divulgado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Teve como carros chefes a soja, o milho e o algodão. Esse volume é 4,5% ou 11 milhões de toneladas superiores ao da safra passada.
O arroz teve registro produtivo de 11,2 milhões de toneladas e crescimento de 6,7% em relação à última safra. No caso do feijão, a estimativa de produção total é de 3,23 milhões de toneladas. O destaque ficou para o feijão-comum, com aumento de 6,4% obtido em 2018/2019, conforme a própria Conab.
Então o que justifica o aumento nos preços se a produção foi tão esplendorosa?
O governo Bolsonaro justifica e tenta se esquivar da culpa, jogando a responsabilidade para o elo mais fraco: o povo. Para o Governo Federal, o auxílio emergencial de R$ 600,00 e R$ 1.200,00 que beneficiou a população brasileira seria o grande vilão do aumento.
Mas, não é isso não! O povo brasileiro é a vítima!
Caro leitor, temos hoje, aproximadamente 40 milhões de brasileiros, em situações de desemprego, subemprego, emprego precarizado e informal. Forçando uma queda no consumo das famílias em 13%, o endividamento familiar está na ordem de 67% e a inadimplência bate na casa de 26,7%.
Assim, é apresentado um quadro de desaquecimento da economia, com fraca demanda interna, caracterizado pelo fechamento de 716 mil empresas. A queda do PIB foi de 9,7% no último trimestre, não podendo nunca ser este o culpado dos aumentos abusivos dos alimentos.
Os R$ 600,00 do auxílio emergencial na verdade são os salvadores para a catástrofe não ser ainda maior! Somente um governo que não tem responsabilidade com o povo faria uma blasfêmia como essa, de culpar o povo!
O culpado sim, foi o Governo Bolsonaro/Guedes!
Com sua política econômica ultraliberal austero e fiscalista, na contramão da tendência mundial, cometeu dois erros gravíssimos. O primeiro foi desmantelar o Estado Nacional e suas políticas públicas de proteção da produção e controle de preços internos, praticados pela Conab e outros setores, principalmente, os da agricultura familiar. O setor, nesse momento de crise de pandemia, seria a salvação de todos os brasileiros.
O segundo erro foi se associar a uma política cambial, equivocada, permitindo que o dólar chegasse aos quase R$ 6,00 (hoje R$5,50), para facilitar a entrada da moeda estrangeira no Brasil via exportação. Essas duas falhas gravíssimas foram fundamentais para chegarmos no aumento dos preços abusivos dos alimentos.
A regulação de preços do mercado, via aquisição do Governo (AGF), que compra na safra e durante entressafra, caiu vertiginosamente. Ela é reposta nos mercados para abastecer e manter o preço em patamares aceitáveis.
No caso do arroz, especificamente, conforme a tabela abaixo, em agosto de 2014 foram de 211.201 toneladas. Já em 2020, no mesmo mês, esteve em 20.834 toneladas, e registrou uma queda de 90%.
Fonte: Conab
Isto explica em partes a falta do arroz, mas não explica tudo.
Outro fator, foi que os países produtores agrícolas do mundo fecharam suas exportações de alimentos para aumentar os seus estoques no período de pandemia do coronavírus, pensando na soberania alimentar de seu povo (Vietnã, China e Europa). Já o Brasil, pela ganância de dólares dos seus governantes, incentivou as exportações dos produtos agrícolas. Desta forma sanou a fome do mundo, e causou a carestia no nosso país.
No caso do arroz, em junho deste ano, o Brasil exportou 245.977,8 toneladas do produto, representando aumento de 1.240,5% com relação ao mesmo mês de 2019. Naquele período, as exportações foram de apenas 18.348,5 toneladas, pois os grandes agricultores tiveram muito mais lucros, com o real desvalorizado em torno de 36%.
Desta forma, o mercado interno ficou desabastecido, fazendo faltar o produto e aumentando seu preço aos consumidores nacionais em quase 20%. O Brasil, portanto, alimenta o mundo, mas internamente tem fome e inflação de alimentos.
Bem conclusivo, caro leitor! Acha que acaba por aí? Pode piorar!
Uma saída estruturante e de longo prazo para conter a inflação dos alimentos seria a implantação de uma política objetiva e firme em investimento públicos, na agricultura familiar e na reforma agrária. Segmento este bastante posto de lado desde o governo Temer e acentuado no governo Bolsonaro.
Agricultura familiar corresponde a 70% do abastecimento de alimentos destinados ao brasileiro. Conforme a Conab, seu orçamento foi constantemente cortado ao longo dos anos, para compra da produção desse segmento, segundo tabela abaixo:
Uma queda de 90%, no período de 2012 a 2018, em 2019, o que equivale a R$ 30 milhões, não foi suficiente para manter os pequenos produtores e abastecer o mercado neste momento de crise. Na prática, isso resulta na transformação do campo, em que as commodities avançam sob áreas agriculturáveis, onde tradicionalmente eram destinadas à produção de alimentos da agricultura familiar, diminuindo a produção de arroz, feijão e hortaliças.
Na próxima safra o cenário se repetirá. É que o Plano Safra deste biênio 2020/2021 foram tímidos e insuficientes. Foi declarado o apoio de R$ 236 bilhões, valor 6% maior do último período, pouco em comparação aos R$ 1,4 trilhões injetados pelo Guedes aos bancos.
Do anunciado pelo Plano Safra, apenas 500 milhões serão destinados à agricultura familiar. O governo apostava na entrada de investimentos estrangeiros para incrementar e turbinar nossa agricultura. O fato não ocorreu devido à pandemia e à preferência desses apostadores internacionais em investir em negócios com menos riscos em seus mercados de origem, retirando do Brasil US$ 15 bilhões nos últimos 8 meses.
Portanto leitor, o cenário com a manutenção dessa política restritiva, de teto de gastos e austeridade fiscal, 2021 continuará aprofundando a crise iniciada em 2020. Governo Bolsonaro não conseguiu salvar a economia, como bradava, e ficará com a mancha de mortes de mais de 130 mil brasileiros pelo Covid-19, do desemprego e da fome.
Reforço! A saída de curto prazo seria o imediato abandono do “teto” e investimento público na demanda e no socorro às micro, pequenas e médias empresas. A ajuda também deveria se estender ao campo mediante o fortalecimento de políticas públicas para agricultura familiar e reforma agrária, como um grande instrumento de combate à inflação e à soberania alimentar.
Estamos num momento de mortes, desemprego e aumento do custo de vida, cenário desolador, voltando a música “Construção”. A reflexão trazida por ela é justamente essa: pessoas morrem todos os dias por causa de condições ruins de trabalho e de vida.
O Governo Bolsonaro, que tinha como obrigação amenizar tais situações de vida da população, não faz nada, e é o principal algoz do povo! Cometendo o crime de dizer que a vítima é culpada, saudando a todos com um sonoro:
“Deus lhe pague!”
*Flauzino Antunes é membro do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal e membro da Executiva Nacional da Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB)
Noti-América/Brasil